quinta-feira, 6 de maio de 2010

Invasão da Bretanha: os lobos que vieram do mar

Os anglo-saxões enfrentaram uma resistência de séculos na Bretanha, mas apagaram quase todos os traços do domínio romano na ilha


Invasões anglo-saxônicas nos séculos V e VI.

O dia amanheceu com uma tranqüilidade enganosa na decadente cidade romana do nordeste da Bretanha (atual Inglaterra). Os negócios estavam fracos no mercado e ninguém mais se arriscava a usar a velha casa de banhos, tão popular entre os endinheirados do passado. Mas pelo menos, pensavam os bretões, dava para contar com a guarnição de mercenários saxões para proteger o local de outros bárbaros. Por isso ninguém viu os guerreiros recebendo com toda calma os barcos a remo na praia nem percebeu que eles se juntaram aos recém-chegados, em lugar de detê-los. Num piscar de olhos, o fórum da cidade tinha sido tomado e seus magistrados eram reféns ou cadáveres. Os mercenários bárbaros haviam tomado o comando. Com uma ou outra variante, essa cena deve ter se repetido por toda a costa bretã durante o século 5. Ao contrário do que muita gente imagina, os saxões e seus parentes invasores, os anglos e jutos, eram velhos conhecidos da população da Bretanha. Tiveram sucesso, em grande parte, porque muitos deles foram admitidos na ilha como mercenários e só então se rebelaram. Lentamente deixaram de atuar como simples piratas e foram conquistando terras e se fixando. Não que os bretões não tenham resistido depois do choque inicial. Em muitos casos, eles conseguiram deter a maré germânica, talvez conduzidos pelo lendário líder que hoje conhecemos como Arthur. Mas, após dois séculos, os invasores se tornaram a principal força da região.

O ataque de piratas germânicos já era um problemão para os moradores da Bretanha desde o final do século 3, quando o poder de Roma ainda controlava a ilha com mão de ferro. Por volta do ano 300, o império precisou construir uma série de defesas costeiras, os chamados “Fortes do Litoral Saxão” – deixando claro quem era a principal ameaça. Por algum tempo a situação melhorou, mas em 367 aconteceu o que os romanos temiam: um ataque conjunto, em todas as frentes – saxões que atravessavam o mar no leste, pictos da Escócia no norte, escotos da Irlanda no oeste, tudo isso misturado a uma rebelião das tropas que deveriam proteger os bretões. O general espanhol Teodósio, pai do imperador homônimo, conseguiu deter os avanços bárbaros por algum tempo e reorganizar as defesas da ilha, mas os soldados que ele trouxe eram, provavelmente, de origem germânica, entre eles vários saxões, pelo que indica o estilo da fivela de cintos militares daquela época.

“Usar mercenários bárbaros para lutar contra outros bárbaros era uma prática comum em todo o mundo ocidental”, diz Johnni Langer, especialista em história medieval da Universidade do Contestado, PR. A situação política destrambelhada do império logo deixaria a ilha ainda mais vulnerável. É que generais que comandavam tropas na Bretanha, a começar pelo poderoso Magnus Maximus, em 383, passaram a ambicionar o cargo de imperador. A cada tentativa (fracassada) de tomar o poder, arrastavam para o continente quase todo o exército e deixavam a ilha desguarnecida. Quando o último desses usurpadores, Constantino III, deu com os burros n’água, os bretões se cansaram e se declararam independentes. O imperador legítimo, Honório, reconheceu o fato em 410, autorizando os nativos da Bretanha a organizar sua própria defesa.

Mas os bretões não sabiam pensar em nada melhor do que continuar a política romana de contratação de mercenários. Havia gente de sobra disposta a encarar esse serviço entre os anglos e saxões (do norte da Alemanha), jutos (sul da Dinamarca) e frísios (da Holanda). “Os dialetos que se formaram na Inglaterra depois da imigração sugerem que todos esses subgrupos falavam uma língua comum, com variações regionais”, conta Michael Drout, especialista em língua e literatura anglo-saxã do Wheaton College, nos EUA. Todos também enfrentavam um problema comum: a superpopulação e a falta de áreas para cultivo em suas regiões natais, pantanosas e perto do mar.

De piratas a conquistadores

A Bretanha era a terra das oportunidades e há sinais de que, no começo do século 5, havia anglo-saxões se estabelecendo como posseiros, outros servindo na defesa das cidades e muitos atuando como piratas. Os registros da época são confusos, mas parece que um chefe bretão de nome Vortigern, que havia se tornado governante supremo de boa parte da ilha, tentou transformar mercenários saxões em seu exército pessoal, concedendo-lhes algumas terras. Mas não cumpriu o prometido. “Foi um dos erros de cálculo mais espetaculares da história britânica”, diz o historiador Simon Schama, autor de A History of Britain. Os chefes dos guerreiros contratados por Vortigern, os irmãos Hengest e Horsa, teriam se rebelado. Conclusão: os protetores (ou piratas) teriam se tornado conquistadores. “As evidências arqueológicas mostram que a migração durou um século ou mais. Pode sim ter existido líderes com os nomes Hengest e Horsa, mas as menções a eles em poemas épicos dos anglo-saxões sugerem que o mais provável é que fossem personagens lendários”, diz Drout, lembrando que os dois nomes querem dizer “cavalo”, venerado pelos saxões.

O fato é que o cavalo dos invasores eram seus barcos a remo. “Na verdade não passavam de canoas que provavelmente não tinham vela”, conta Langer. Mesmo assim eram boas o suficiente para fazer a travessia do mar do Norte e subir os rios até as cidades e os povoados rurais. O armamento também era simples, mas eficiente: lanças, machados, uma espada curta chamada seax (origem do nome tribal dos saxões) e escudos de madeira.

Tudo indica que os nativos da ilha se recuperaram do susto inicial porque, depois de um avanço saxão que atingiu cerca de metade do território da atual Inglaterra, houve um respiro. Nas primeiras décadas do século 6, alguém chamado Arthur (provavelmente um general, e não um rei) parece ter liderado a cavalaria bretã contra os soldados de infantaria saxões e levado a melhor. Mas a divisão da Bretanha em pequenos reinos, sem uma liderança forte, impediu que a reação fosse pra valer. Um novo grupo de invasores, que iriam formar o reino saxão de Wessex, voltou a empurrar os bretões para o oeste. É bom frisar que o processo foi lento. No início os anglo-saxões eram só uma nova elite, governando uma população nativa maior, que não foi exterminada. “A substituição completa nunca aconteceu. O que houve foi a prevalência cultural das populações germânicas”, explica Langer. Na Inglaterra e em parte da Escócia, a partir do ano 600, os recém-chegados reinavam absolutos.

O túmulo-barco

Não há prova maior da abrangência das conexões comerciais e da riqueza dos anglo-saxões pouco depois da invasão do que o túmulo real de Sutton Hoo. Encontrado no vilarejo de mesmo nome no sudeste da Inglaterra, o sítio arqueológico provavelmente abrigava o corpo do rei Raedwald, de East Anglia, morto por volta do ano 620. Raedwald foi um dos primeiros soberanos anglo-saxões a se converter ao cristianismo e sua última morada mostra uma mistura curiosa de influências pagãs e cristãs. Para começar, seu “caixão” é um barco de quase 30 metros de comprimento, completamente equipado com jóias belíssimas e armas de luxo. Os poemas épicos anglo-saxões sugerem que os reis eram enterrados dessa maneira para irem de barco ao além. O elmo decorado com bronze e o enorme escudo lembram o estilo romano do fim do império, enquanto o tipo do enterro e outros objetos sugerem conexões com a Suécia. Por outro lado, caldeirões de bronze foram quase certamente fabricados por bretões. E, o mais intrigante de tudo, há um par de colheres de prata que levam as inscrições gregas “Saulo” e “Paulo” – os dois nomes do apóstolo São Paulo. Sua origem é provavelmente bizantina e indica a conversão de Raedwald, já que Saulo era o nome usado pelo apóstolo antes de se tornar cristão.

.:: Aventuras na História

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